Renato Escorel

"Embora admita a forma culposa, entendida como aquela em que não há intenção, cuja pena será mais branda, o crime de epidemia é doloso, o que significa que o agente precisa pautar-se em sua vontade livre e consciente de provocar epidemia. Vale lembrar: o dolo é a consciência e a vontade de realizar os elementos descritos do tipo...", cita Renato Escorel - Coordenador Direito Penal na Vezzi, Lapolla, Mesquita Advogados no Artigo VIAETICA - O Direito Penal na proteção da saúde pública durante a pandemia do coronavírus.


Aprendi na vida profissional que o Direito Penal tem como finalidade a proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais para a busca da manutenção da paz social, ou seja, convivência pacífica entre indivíduos. A norma penal tem função de garantia que se aplica mediante a tipificação das condutas consideradas delituosas.

A proteção conferida pela norma penal é subsidiária e deve funcionar como último instrumento do Estado, intervindo unicamente quando fracassarem as demais barreiras protetoras do bem jurídico. Trata-se de importante diretriz ao legislador penal: a intervenção mínima.

Assim, para os bens jurídicos essenciais destinados à essa proteção, a Parte Especial do Código Penal divide-se em Títulos, tomando por base o critério para cada bem assegurado.

Em relação ao enfrentamento deste cenário crítico da saúde pública, estão inseridos no Capítulo III do Título VIII, da referida Parte Especial, os tipos penais que incriminam as condutas que lesionam ou colocam em perigo um número indeterminado de pessoas, em especial, as condutas nocivas à saúde pública.

O crime de epidemia, previsto no artigo 267, conta com uma pena de 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão para o agente que “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”, sem prejuízo da aplicação de pena maior para o caso de morte. “Causar” tem o significado de provocar, originar, acarretar o contágio de uma doença infecciosa e que atinge a coletividade.  A COVID-19, por exemplo.

Contudo, não se deve confundir epidemia, ou seja, a contaminação de muitas pessoas, de maneira abrupta, além do esperado, causada por determinada doença, com pandemia, que consiste na epidemia de âmbito global, assim determinada pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

Isto posto, dado que já nos encontramos em um dos mais afetados países onde a pandemia avança no mundo, o crime de epidemia é de difícil consumação, em razão da absoluta impropriedade do objeto. Este é o crime impossível (art. 17). Não há que se falar em agente causador de epidemia se o local em que a conduta seria praticada já estiver ocupado pela doença.

Embora admita a forma culposa, entendida como aquela em que não há intenção, cuja pena será mais branda, o crime de epidemia é doloso, o que significa que o agente precisa pautar-se em sua vontade livre e consciente de provocar epidemia. Vale lembrar: o dolo é a consciência e a vontade de realizar os elementos descritos do tipo.

O dolo eventual também é permitido e pode ter aplicação para os agentes que, embora não diagnosticados com a doença, apresentam os sintomas e contaminam terceiros. A disseminação, neste caso, é consequência não desejada, mas prevista como possível pelo agente. A contaminação ocorre, então, em área considerada livre da doença (caso contrário, não há epidemia).

Mais adequado para combater, em tese, eventual descumprimento das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, é o crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, e com pena de detenção que varia de um mês a um ano, além da cominação de multa.

Tipo penal mais aderente às discussões relacionadas à obrigatoriedade das medidas decretadas, com núcleo voltado para o termo “infringir”, que tem o sentido de transgredir, desobedecer ou violar. Admite somente a forma dolosa, sem previsão legal para as condutas praticadas com a inobservância de um dever de cuidado objetivo (culposas, sem intenção).

A conduta do agente, aqui, ao contrário do que ocorre no delito de epidemia, não precisa estar direcionada para a transmissão da doença para terceiros, sendo suficiente a vontade livre dedesrespeitar a determinação do Poder Público, com a consciência de que se põe em perigo a saúde pública.

Não há necessidade de comprovação da propagação da doença decorrente da conduta do infrator. Ninguém precisa ser contaminado, necessariamente. Não há, portanto, obrigatoriedade de produção de resultado naturalístico (crime formal).

Sendo normal penal em branco, todavia, o crime de infração de medida sanitária preventiva exige o efetivo complemento, ou seja, outra norma que disponha exclusivamente sobre a determinação que não foi cumprida pelo infrator.

Como falamos sobre o coronavírus e conjecturas baseadas na criminalização das condutas desobedientes neste cenário, o complemento necessário se encontra na Lei nº 13.979/2020, que dispõe em seu artigo 2º, incisos I e II, sobre o isolamento e quarentena, ou seja, respectivamente, separação de pessoas doentes ou contaminadas e restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes.

Portarias que dispõem sobre regulamentação da mencionada Lei (356/2020 e 5/2020) também funcionam como complemento e são essenciais à efetividade da aplicação do crime de infração de medida sanitária preventiva.

Por óbvio, merece consideração o crime de desobediência, punível com a pena de detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, além da multa, já que, embora tenha como objetivo a proteção de bem jurídico diverso, o cumprimento das ordens emanadas pela Administração Pública, concentra elementos com o significado de não cumprir, faltar à obediência ou não atender ordem legal.

Cabe punição ao agente pela prática do crime de desobediência, desde que devidamente comprovado o pleno conhecimento prévio a respeito da ordem que lhe foi dirigida, além da manifesta intenção em contrariá-la. Não há forma culposa.

Face ao exposto, cientes da possibilidade de aplicação, ainda que por hipótese, dos instrumentos de que se vale o Estado para preservar a saúde pública, cabe a cada um a compreensão do seu papel na busca de um cenário mais positivo.

Nunca é demais lembrar que, a despeito das formas de controle disciplinadas pelo Direito, o exemplo, as orientações técnicas advindas dos especialistas da saúde, a conscientização e a boa informação são formas de controle igualmente eficazes, que certamente poderão nos ajudar no enfrentamento da pandemia.

Renato Escorel
Coordenador Direito Penal na Vezzi, Lapolla, Mesquita Advogados
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