Daniel Jezini

"Brincar com gestão de riscos, comitês de ética e regras de compliance só para ficar bonito na foto e no relatório de auditoria pode trazer efeitos colaterais adversos como a perda de legitimidade desses instrumentos e de confiança em geral."...trecho do Artigo VIAETICA - Desgovernança Corporativa, escrito por Daniel Jezini* - Assessor do Ministro Aroldo Cedraz do TCU - Tribunal de Conta da União.


Vamos começar com o problema da falta de governança corporativa por duas razões. A primeira é que o começo é lá em cima mesmo, na alta gestão. A segunda razão é que costuma ser mais confortável quando a culpa é dos outros. Nesse caso, temos razões para crer que a culpa é do chefe, do bigboss. No caso de o chefe ser você mesmo resta só um motivo, mas soma-se à esperança de ser alguém interessado em aprender mais sobre esse assunto. 

Ao que parece, teremos de conviver com a tendência de que tudo se desarranja caso haja tempo suficiente, a exemplo do nosso guarda-roupa. Na física, dá-se o nome de entropia. Para que a ordem e a previsibilidade prevaleçam é necessário gastar energia, com uma ação deliberada e intencional, nessa direção. Se fosse fácil identificá-las e empreendê-las, o mundo seria muito mais simples, sempre haveria guardanapos na mesa e nem precisaríamos desses textos pretensiosos para discutir formas de consertá-lo.

Nessa esteira, as organizações se bagunçam naturalmente no espaço deixado pela liderança, tendo como consequência a elevação da energia empregada em ações e projetos que não contribuem significativamente para o resultado.

Abre-se espaço para desvios de toda natureza, inclusive éticos. 

Chamemos isso de dispersão de energia. Quanto maior o espaço em que a liderança deixa de atuar, mais energia produtiva se dissipa, ou seja, maior a dispersão de energia.

Voltando ao tema, e à física, não há espaço livre que não seja preenchido. Qualquer lacuna de liderança será ocupada por atividades, incentivos e uma multidão de interesses, em geral desalinhados com os objetivos organizacionais, ou do interesse do "principal", segundo a teoria da agência.

A palavra cháos era usada pelos gregos para se referir ao vazio abissal. Quando a gestão executiva, ou seja, a liderança não exerce seu papel na governança, o resultado esperado, concedido o tempo necessário, é o cháos. Curiosamente, as organizações costumam perpetuar hábitos enraizados, previsíveis e confortáveis. Imagine um caminhão cheio de pedras, mas em movimento. Um veículo assim tende a manter seu movimento inercial, ainda que careça de significado. Exige muito esforço para mudar sua velocidade ou direção. Então, enquanto ele estiver aparentemente no rumo esperado, melhor deixá-lo em paz.

Não é tão diferente com uma organização. Deixada por si, tenderá a manter uma aparência de normalidade ad infinitum. Ou enquanto houver nutrição financeira. Assim, o cháos organizacional costuma se instalar disfarçado de burocracia inócua, falta de objetividade e iniciativas sem sentido. Soa familiar?

Um bom gestor, ao buscar preencher esse espaço exercendo seu papel na governança, sabe que não é fácil alcançar as diferentes camadas organizacionais. Ainda que ele seja inspirador e carismático, seja capaz de transmitir uma visão e toque corações, ainda que tenha um sorriso encorajador, um olhar comunicativo e ossos da face simétricos, deverá reconhecer a impossibilidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Ou ao menos que continuar tentando é muito cansativo. Nenhum livro ou guru de liderança lhe dirá que a ubiquidade é um pré-requisito para a função. Aparentemente, a lógica funciona ao contrário.

Ele precisará de outros para realizar a obra. O que será posto à prova não serão a intensidade dos aplausos ou a quantidade de lágrimas vertidas em reuniões ou apresentações internas, mas a capacidade dirigir, controlar e monitorar. Ou seja, de governar. Ou melhor, de exercer o mandado da governança. E esse mandato passa, essencialmente, pelas atividades de avaliação, direcionamento e monitoramento da gestão.

A governança de organizações trata, então, de disciplinas que deveriam incentivar o corpo gerencial a alcançar os resultados esperados por quem tem a prerrogativa de defini-los, sejam cotistas, acionistas ou a sociedade. Esta última, no caso de organizações públicas, por meio de seus representantes. Lindo, não? Tentemos simplificar.

Em tecnologia, pode-se dizer que no fim tudo se resume a zeros e uns. Quando se trata de governança e gestão, tudo se trata de gente, e nem precisamos chegar ao fim para sabê-lo. São seres humanos, com todas as suas virtudes e, bem... digamos... limitações, sejam morais, relacionais ou cognitivas.  Alguns, mais humanistas, dirão: “Felizmente!” Outros não estarão tão certos disso.

Parte da resposta a esse desafio está na definição de um sistema de governança, um problema que começou a ser enfrentado na esfera pública com a publicação do Referencial Básico de Governança do TCU, cuja versão 3.0 está no forno nesse momento. Nele, liderança, estratégia e controle, os chamados mecanismos de governança, são os pilares desse sistema. E ele não se constrói sozinho, ao contrário, consome recursos materiais e humanos vorazmente.

Implementar esses processos custa caro, então há que se calcular se estamos dispostos a pagar o preço. Brincar com gestão de riscos, comitês de ética e regras de compliance só para ficar bonito na foto e no relatório de auditoria pode trazer efeitos colaterais adversos como a perda de legitimidade desses instrumentos e de confiança em geral.

Como auditor, envolvido em avaliações desse tipo em organizações públicas, cansei de me deparar com políticas formais, aderente às melhores práticas possíveis, e zero de impacto na gestão. Burocracia gratuita.

Ou seja, no papel há os instrumentos de governança e gestão, há o avaliar, dirigir e monitorar, mas na prática o cháos segue no ritmo da opinião da diretoria de plantão. Não significa que será um fracasso e que tudo dará errado, mas sim que, caso essa liderança seja incompetente e dada a desvios éticos, será muito mais difícil identificar a encrenca e, enfim, tratá-la.

Uma boa governança não garante sucesso, esse continua dependente da capacidade das equipes diretivas, mas facilita a exposição e o enfrentamento do cháos, o caldo de cultura da ineficiência e da falta de ética.

 

Daniel Jezini
Assessor do Ministro Aroldo Cedraz – TCU
Autor do Livro  - Liberte o palestrante que existe em você: o código das apresentações que marcam

Nota: “as opiniões e conceitos tratados pelo(s) autor(s) nesta publicação são de responsabilidade única e exclusiva do(s) autor(s) e não refletem necessariamente o entendimento do Tribunal de Contas da União"